“É urgente o restabelecimento das mesas de negociação. A legislação poderia ajudar. O PLS 397/2015 regulamentou importantes aspectos da negociação coletiva no serviço público, apesar de não estipular data-base nem prazos para conclusão das etapas negociais.”
Entre 2019 e 2022 a inflação, medida pelo IPCA, deve alcançar 30%. Nesse intervalo, o governo atual completará o mandato sem negociar e sem aprovar reposição salarial alguma para os 1,2 milhão de servidores federais civis, um feito inédito desde a redemocratização do país.
A oferta de emprego público federal encolheu[1]. Os concursos praticamente cessaram, contribuindo para a deterioração do mercado de trabalho reformado na direção da informalidade, da intermitência e da desproteção.
O enxugamento da máquina em plena pandemia coincidiu com um processo de degradação de políticas públicas, da saúde (apagão de dados, conflitos federativos) à educação (crise no ENEM, redução de matrículas nas universidades), do meio ambiente (aumentos do desmatamento) à cultura, passando pela assistência, trabalho e previdência (volta da insegurança alimentar, filas recordes no INSS).
Hoje a renda por habitante é inferior à de 2010. A regressão econômica constitui o pano de fundo da queda dos salários e da piora na criação/qualidade do emprego, privado e público, potencializadas por uma segunda onda (depois dos anos 1990) de reformas neoliberais.
As eleições não são a única ferramenta, mas constituem oportunidade de revisão de prioridades. Quando o tema é serviço público, a ênfase recai na reforma administrativa, com contornos ainda indefinidos, mas, espera-se, distantes dos retrocessos inscritos na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) no 32/2020. Aqui enfocamos as relações de trabalho no serviço público em suas dimensões negocial, coletiva, e de representação, que também impactam a política remuneratória, a qualificação do servidor, a gestão pública e as próprias entregas do Estado à sociedade.
Três eixos de aprimoramento das relações de trabalho no serviço público
A negociação coletiva, o direito de greve, e o aperfeiçoamento da organização sindical, constituem, nos termos da Convenção 151 e da Recomendação 159 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), eixos fundamentais de aprimoramento das relações de trabalho no setor público. Ratificadas pelo Brasil em 2013, no entanto, as recomendações da OIT prosseguem sem regulamentação, facilitando retrocessos que demandam correção/superação.
Negociação Coletiva no Serviço Público
Sem previsão legal, mas inspiradas na redemocratização do país, as Mesas Nacionais de Negociação no Governo Federal surgiram nos anos 1990, para se disseminarem na década seguinte. Compostas por governo e sindicatos, as pautas envolviam política salarial, direitos sindicais, seguridade social, reestruturação do serviço público e diretrizes dos planos de carreiras. A lógica do arranjo passava pela expressão do interesse coletivo dos servidores pelos sindicatos, que em contrapartida eram reconhecidos como partes aptas à explicitação de dissensos e convergências na construção de acordos.
As mesas, no entanto, foram esvaziadas na gestão Temer, sendo extintas no governo Bolsonaro. Sem elas, prevalece a desorientação e a comunicação truncada via imprensa, com “decisões” apresentadas em um dia para serem desmentidas no outro, como neste ano quando o Governo Federal anunciou sucessivamente reposição salarial exclusiva para uma categoria, depois reposição linear abaixo da inflação para todos, na sequência correção do auxílio alimentação, para ao fim manter congelados salários e benefícios. A inexistência de negociação também favorece o aprofundamento de conflitos, a postergação de soluções e o desperdício de energia da Administração e dos servidores.
É urgente o restabelecimento das mesas de negociação. A legislação poderia ajudar. O PLS 397/2015 regulamentou importantes aspectos da negociação coletiva no serviço público, apesar de não estipular data-base nem prazos para conclusão das etapas negociais; mas em 2017, após aprovação no Congresso, foi integralmente vetado pelo Poder Executivo; em 2019 foi reapresentado no Senado (PL 711/2019), assim como na Câmara (PL 4795/2019), mas sem tramitar. A oportunidade está aí.
Direito de Expressão e de Greve
Sob o pretexto de orientar condutas compatíveis com o dever subjetivo de lealdade funcional, a Administração vem procurando limitar manifestações pessoais de servidores sobre questões políticas e de governo nas redes sociais. Um exemplo é a Nota Técnica no 1556/2020/CGU/CRG, que considera passível de apuração disciplinar “a divulgação em mídia social de manifestações…de opiniões contrárias aos entendimentos da casa pelo servidor.”
Entendimentos como esse ferem o direito fundamental à liberdade de expressão, além de desconsiderarem que a diversidade de opiniões contribui para o aperfeiçoamento de políticas e instituições. O risco de prejuízo à imagem institucional não justifica a ameaça prévia à manifestação. A boa notícia é que decisão em primeira instância da Justiça suspendeu os efeitos da Nota Técnica[2], mas apenas após dois anos de assédio institucionalizado.
No que tange ao direito à greve no serviço público, o governo vem utilizando diferentes meios para mitigá-lo. A Instrução Normativa (IN) SGP/SEDGG/ME 54/2021, por exemplo, prevê o desconto imediato dos dias não trabalhados, remetendo para depois, com eventual assinatura de termo de acordo, a possibilidade de compensação. A mesma Instrução orienta o registro da greve no histórico funcional do servidor, fomentando o clima persecutório.
Ao invés da IN 54, pode-se propor, com amplo debate, legislação em complemento à Lei Geral de Greve (Lei no 7.783/1989) mais adequada às particularidades do setor público e à preservação do interesse público, sobretudo no que se refere à definição de atividades essenciais e ao contingente mínimo a ser mantido em operação nessas atividades.
Organização Sindical dos Servidores
A organização sindical encontra-se sob ataque. A reforma trabalhista de 2017 e a precarização do emprego reduziram em 90% as receitas dos sindicatos dos trabalhadores do setor privado. No setor público, com menor preponderância da terceirização e onde o imposto sindical já não vigorava, a perda de receitas das entidades ocorreu, mas em menor escala, associada à baixa reposição de servidores e à redução dos salários reais.
Se a reforma trabalhista não incidiu diretamente sobre os sindicatos de servidores, outras práticas antissindicais se destacaram no período recente, algumas prosperando, outras bloqueadas. Por exemplo, a Medida Provisória no 873/2019, que tinha por objetivo proibir o desconto em folha da contribuição voluntária sindical e associativa dos servidores, foi arquivada no Congresso, mas o risco prossegue sendo necessário reforçar o princípio da autonomia financeira dos sindicatos. Já a IN no 2 SGP/MPDG/2018 passou a exigir compensação de ponto dos participantes em atividades sindicais, mesmo dos membros de diretorias, dificultando reuniões, assembleias, audiências etc. Outro exemplo é o Ofício-Circular no 605/2016-MP, que retirou da folha de pagamentos da União os servidores com liberação para mandato classista, privando-os, inclusive, de contracheque.
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Reverter retrocessos para avançar nos marcos legais da organização do trabalho em geral, e no serviço público em particular como discutimos aqui, não anulam os efeitos do ciclo econômico e de decisões políticas sobre o bem-estar dos trabalhadores, mas ajudam na construção de relações menos assimétricas entre empregador e empregado.
[1] “Gasto do governo com servidores cai para menor patamar em 26 anos: congelamento de salários e restrição a concursos públicos reduzem despesa com ativos e inativos”, F. de São Paulo, 13 de agosto 2022.
[2] “Justiça suspende Nota da CGU que repreendia servidor por opinião”, Metrópoles, 1 de set. de 2022.
1. Mestre em Economia. Auditor Federal de Finanças e Controle. Presidente do UNACON Sindical.
2. Doutor em Filosofia. Auditor Federal de Finanças e Controle. Presidente do FONACATE, presidente da FENAUD, Secretário Executivo do UNACON Sindical.