Sílvia Helena G. de Miranda é professora da Esalq/USP e pesquisadora do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada – Cepea
Há décadas as questões sanitárias de plantas e animais integram a lista das preocupações do agronegócio brasileiro e mundial, refletindo-se no dia a dia de produtores rurais, da agroindústria processadora e de insumos, dos agrônomos, veterinários, biólogos e zootecnistas que assessoram o setor, e dos órgãos governamentais competentes. Apesar disto, a compreensão do papel desse tema para a competitividade sustentável do agronegócio ainda é acanhada e limitada para grande parte da sociedade.
Em geral, o desafio da sanidade é evidenciado quando se trata dos obstáculos que as exportações brasileiras dos produtos agropecuários – que, de janeiro a novembro de 2016, totalizaram US$ 66,7 bilhões – enfrentam nos países de destino. As questões sanitárias são alvo frequente de discussões sobre barreiras comerciais e foco de negociações árduas, longas e com alto conteúdo científico, tal como as que conduziram à abertura do mercado norte-americano para a carne bovina brasileira in natura em 2016. Há, contudo, um aspecto que o público em geral subestima e, até mesmo, desconhece, que é aquele relacionado à proteção do mercado e do consumidor doméstico, assim como da preservação da sanidade dos rebanhos e das culturas agrícolas em nosso território. Tal aspecto aponta para a outra face das questões sanitárias, além das políticas comerciais, mas também correlacionada, que é a da defesa agropecuária.
A tese que defendo é a de que, no Brasil, seja para o exportador de produtos do agronegócio, seja para o importador, para o produtor de mandioca que abastece o mercado interno, ou para o de açúcar, que responde pela maior parte do produto comercializado mundialmente, o desafio é um só: garantir que, ao longo de todo o processo produtivo e de distribuição, as condições de sanidade adequadas sejam observadas pelos segmentos envolvidos e reconhecidas pelos consumidores. Se o produto se destinará ao consumidor externo ou ao doméstico, pouco importa, salvo por eventuais especificidades sanitárias e técnicas requeridas adicionalmente por compradores estrangeiros.
Possivelmente, a dificuldade de quantificar os impactos sociais, econômicos e ambientais das medidas sanitárias impostas ao setor produtivo, ou da sua ausência ou não observância, é um dos fatores que prejudicam a compreensão da relevância deste tema para o agronegócio nacional, em toda sua heterogeneidade e escopo. A introdução de doenças e pragas, ou a incidência e disseminação das mesmas, nas culturas agrícolas ou nas criações animais, podem, além de ameaçar a saúde pública, promover a realocação do uso do solo agropecuário, a migração de culturas e criações animais, o desemprego regional, mas até comprometer a balança comercial.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) relata que no surto de Escherichia coli, na Alemanha, em 2011, houve perdas de US$ 1,3 bilhão para agricultores e indústrias ; nos Estados Unidos, estimaram-se perdas econômicas de US$ 3,3 bilhões em 2015, devidas à crise sanitária instaurada pelos focos de gripe aviária , prejudicando, inclusive, as exportações do setor afetado. Os impactos sociais, sobretudo, costumam ser desconsiderados, mas, na história brasileira, há registros que evidenciam que os mesmos têm magnitude e amplitude relevantes. Pettres et al. (2007, p.1) concluem, a partir de estudo de caso com famílias de agricultores de Jóia (RS), onde ocorreu um surto de febre aftosa em 2000, que essa crise causou uma “ruptura prolongada nos modos de vida no meio rural afetado, efeitos sobre a saúde mental das pessoas, perda de renda e alterações na economia local…”. Todos ilustram a relevância da questão sanitária em seus variados aspectos.
Em um mundo competitivo, a garantia de um status sanitário adequado e de sua manutenção não será apenas motivada pela necessidade de produtos adequados para consumo e emprego como insumo, mas cada vez mais um elemento de diferenciação entre fornecedores competitivos. As questões sanitárias são e continuarão sendo, por muito tempo, um instrumento para competir no mercado internacional, e por que não, no nacional?! Aqueles agentes e segmentos que embutirem em seus processos, como filosofia para suas equipes internas e fornecedores, uma visão sistêmica sobre a sanidade terão assegurado um dos componentes principais para sua sustentabilidade nos negócios.
Esta tese de que a sustentabilidade do agronegócio depende, pois, em grande parte, da gestão sanitária impõe a toda cadeia agropecuária a adoção das medidas previstas na legislação e em normativas técnicas, a comprovação de conformidade a tais regramentos e padrões exigidos pelo mercado, dentro de um sistema que preze a confiabilidade. Impõe aos setores das cadeias de suprimentos que, igualmente, atentem às regras nacionais (e quando for o caso, internacionais) em seus mais diversos âmbitos. Impõe, também, às agências governamentais, que assegurem um arcabouço legal que garanta a sanidade nas produções agroindustriais, e que, adicionalmente, esteja alinhado com o preconizado pelas organizações internacionais. Sobretudo, a estes agentes, a tese proposta requer seu comprometimento com a garantia de condições básicas para o bom funcionamento das cadeias agroindustriais, assegurando um ambiente regulatório coerente, transparente e moderno, assim como o monitoramento desses processos. Mas, acima de tudo, essa sustentabilidade será alcançada em um ambiente que fortaleça a interação entre setor privado, governo e instituições de pesquisa e ensino.
A previsão do Mapa para até 2025/26, publicada em estudo de julho de 2016, aponta que tanto o mercado doméstico quanto o internacional serão propulsores do dinamismo do agronegócio, com crescimento projetado em 10 anos de 30% na produção tanto de grãos como de carnes, em relação a 2015/16 (MAPA, 2016, p. 92) . Nesse relatório, é explícita a menção de que tal desempenho exigirá esforços em infraestrutura, investimento em pesquisa e financiamento. Cabe enfatizar, neste contexto, a urgência de adicionar a essa lista o fortalecimento das políticas sanitárias. Assim como a pesquisa e a infraestrutura, a garantia sanitária, em todos os seus aspectos, é também um desafio de médio e longo prazo. A sanidade deve primar por uma visão de longo prazo, já embutida no Plano de Defesa Agropecuária (PDA), lançado pelo Mapa em 2015, e que vem sendo reforçada pelas autoridades do setor, em notícias e por recentes ações do Ministério da Agricultura no sentido de fortalecimento da Defesa sanitária animal e vegetal, em uma clara demonstração do reconhecimento da importância desse assunto para a competitividade sustentável do nosso agronegócio.
Fonte: Cepea