Por:
Delciene Pereira*
Douglas Andrade da Silva
José Celso Cardoso Jr.
O Estado precisa entregar serviços públicos de qualidade à população com eficiência e eficácia. Entretanto, raramente surge no debate a questão de que o Estado é que, para cumprir seus objetivos, precisa ter capacidades institucionais adequadas, sendo uma das mais importantes um sistema de carreiras condizente com os desafios a serem enfrentados.
O sistema de carreiras do Poder Executivo Federal conta com 117 planos de cargos e 43 carreiras, que contemplam cerca de 2 mil cargos distintos. Alguns cargos possuem a mesma denominação e atribuições semelhantes, mas o fato de estarem em planos de cargos ou carreiras diferentes faz com que tenham diferentes remunerações. Essas diferenças somam desde poucos centavos a valores três ou quatro vezes superiores.
As discrepâncias remuneratórias são tão diversas que é possível encontrar, por exemplo, o cargo de médico na Carreira da Previdência, da Saúde e do Trabalho (CPST) com remuneração inicial de R$ 7.932,80 e final de R$ 12.198,74 e outro cargo de médico no Plano Especial de Cargos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) com remuneração inicial de R$ 11.683,42 e final de R$ 17.508,11. Frisa-se que, no caso da saúde pública, os servidores ocupantes desses cargos exercem suas funções no mesmo Sistema Único de Saúde (SUS), sendo que os primeiros atendem a população nos hospitais federais do Ministério da Saúde e os segundos na área de regulação da Anvisa.
Essas discrepâncias não param por aí. Vejamos o caso de um professor da Carreira de Magistério Superior, do Plano de Carreiras e Cargos de Magistério Federal, ocupante do cargo de Professor do Magistério Superior (Lei nº 12.772, de 2012), com a maior titulação (doutorado) com carga horária semanal de 40h, remuneração inicial de R$ 6.356,02 e final de R$ 13.569,74. Esse servidor possui remuneração inferior a de um servidor da área administrativa da universidade que, com o mesmo título e carga horária, pode receber de R$ 8.944,51 a R$ 15.877,79.
Diante disso, é importante fazer a seguinte reflexão: se todas essas funções são importantes – e algumas essenciais – ao funcionamento do Estado, por que foram tratadas de modo tão distinto, chegando aos dias atuais com tantas discrepâncias? Fato é que essas diferenças foram geradas ao longo de décadas, sem seguir uma lógica racional, atendendo apenas a pressões e barganhas políticas diferenciadas das diversas categorias profissionais.
Um olhar histórico ajuda a entender esse cenário. As categorias mais organizadas pleitearam a saída do então Plano de Classificação de Cargos (PCC), criado pela Lei nº 5.645, de 1970, decorrente da reforma administrativa ocorrida no fim da década de 1960, que pretendia agrupar todo o pessoal civil do governo federal num mesmo arranjo organizativo. Em virtude dessa pressão para sair do plano unificado de cargos, foram criados planos, carreiras e remunerações diferenciadas para os grupos de servidores que detinham maior capacidade de organização e influência política.
No decorrer do tempo, os diversos modelos de estruturação de carreiras foram se sobrepondo, causando efeitos nocivos como aumento da complexidade da gestão, fragmentação de arranjos organizativos e elevação de custos. Atualmente, parcela significativa da estrutura de carreiras no serviço público federal se baseia no chamado “modelo autárquico”, no qual cada órgão e entidade possui carreiras próprias para o desempenho de atribuições muito específicas, incorrendo-se no risco de obsolescência das atribuições do cargo e rigidez da atuação pública, especialmente no contexto atual, marcado pelo dinamismo tecnológico e por desafios geralmente imprevisíveis.
É importante frisar que esse modelo autárquico de criação de planos, carreiras e cargos, no qual cada organização possui suas próprias carreiras finalísticas e técnico-administrativas se mostrou inadequado às necessidades da administração pública contemporânea. Um dos principais desafios a ser enfrentado na gestão de pessoas do setor público brasileiro é justamente a multiplicidade de planos, carreiras e cargos, com regras de gestão e remunerações distintas, mobilidade intraorganizacional reduzida (quando não inexistente), mesmo quando se relacionam e desempenham atividades idênticas, similares ou transversais comuns ou análogas a mais de um órgão ou entidade.
Esse modelo fragmentado, complexo, pouco flexível e de custo elevado impõe uma série de desafios, pressões e questionamentos difíceis de serem explicados e enfrentados cotidianamente pela Administração Pública Federal.
Nesse contexto, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) está estudando a adoção de novas formas de gestão que possam contribuir para frear a proliferação dessas desigualdades e, ao mesmo tempo, promover uma harmonização no sistema de carreiras, de modo incremental, por meio de atos infraconstitucionais, sem a necessidade de adoção de medidas radicais, como ocorreu em alguns países da Europa, a exemplo de Portugal.
A aposta do MGI para iniciar a organização do sistema de carreiras é fixar um conjunto de diretrizes que irão nortear as iniciativas de órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional na elaboração de propostas de criação, ampliação e reestruturação de planos, carreiras e cargos efetivos. A proposta, a princípio, não tem o condão de alterar regras de carreiras vigentes e estabelecidas em lei, mas, no longo prazo, pode racionalizar a organização do pessoal civil do Poder Executivo Federal, uma vez que propiciará a simplificação de planos, carreiras e cargos efetivos e de suas estruturas remuneratórias e a diminuição de cargos com atribuições similares, além de interromper a expansão desordenada de carreiras.
Para reorganizar os cargos e as carreiras, a proposta que está sendo gestada no MGI procurará promover a atualização e o enriquecimento do trabalho desenvolvido pelos servidores, mediante a definição de atribuições mais amplas e complexas, de acordo com as áreas primordiais de atuação do Estado, e mais complexas. Essa proposta reflete o necessário redirecionamento da atuação estatal para o atendimento dos desafios emergentes da sociedade brasileira no século XXI.
Propõe-se definir atribuições claras e abrangentes, que proporcionem maior mobilidade dos servidores entre órgãos, entidades e setores da Administração Pública. Os cargos também poderão ser classificados em especialidades quando forem necessárias a formação especializada ou domínio de habilidades específicas. Ademais, busca-se limitar a criação de cargos com atribuições similares aos já existentes ou com atribuições temporárias e/ou tendentes à obsolescência, além daqueles estritamente operacionais, de apoio ou suporte. Ao fixar essas limitações, procura-se reduzir as sobreposições de atribuições e possibilitar à Administração concentrar seus esforços na sua atuação finalística e/ou que envolva maior grau de complexidade.
Quanto ao desenvolvimento do servidor público, as novas diretrizes de carreiras orientarão os órgãos e as entidade a considerar em suas propostas critérios que avaliem o exercício de atividades de maior grau de complexidade, o engajamento, o comprometimento com o trabalho realizado e sua contribuição para o alcance dos resultados institucionais.
Pretende-se ampliar o tempo de desenvolvimento nas carreias para, predominantemente, 20 anos, considerando que, em média, os servidores permanecem na ativa por cerca de 34 anos. Essa diretriz propiciará corrigir as distorções atualmente existentes. A título de exemplo, existem carreiras em que os servidores, atualmente, chegam ao topo em apenas 9 ou 13 anos e outras em que levam 20 anos ou mais. Entretanto, será considerada a possibilidade de o desenvolvimento na carreira ser diferenciado aos servidores que apresentem, entre outros requisitos, alto desempenho. Essas medidas propiciarão a eliminação do desenvolvimento na carreira com base apenas no decurso temporal.
Além disso, a ideia é também estimular a estruturação de carreiras que valorizem tanto perfis técnicos quanto gerenciais, oferecendo ao servidor possibilidades distintas de desenvolvimento na carreira. Fortalecer as estratégias e criar condições que propiciem o desenvolvimento contínuo dos servidores ao longo de todo o seu ciclo laboral – desde o ingresso até a aposentação – é essencial para que eles possam desenvolver suas potencialidades e para que o Estado possa implementar as políticas públicas com eficiência, eficácia e efetividade.
Em relação à estrutura remuneratória, as diretrizes que estão sendo discutidas no MGI, em diálogo com as entidades que representam os servidores, visam a simplificar e priorizar a remuneração em parcela única, associar titulações acadêmicas ao desenvolvimento na carreira e não apenas ao incremento de parcelas remuneratórias, vedar o tratamento remuneratório diferenciado para cargos de mesma natureza e com similar complexidade de atribuições e responsabilidades e a criação de espécie remuneratória sem contribuição previdenciária que possa ser incorporada aos proventos de aposentadoria.
As discussões sobre as novas diretrizes de carreiras estão em sintonia com outras iniciativas do Governo Federal que buscam melhorar as práticas governamentais, promover maior eficiência, racionalização, isonomia, transparência e flexibilidade à Administração Pública, valorizar o servidor, o mérito e o desenvolvimento contínuo, em sintonia com as melhores práticas de gestão de pessoas.
O governo do presidente Lula entende que o atual sistema de carreiras se caracteriza pela fragmentação e heterogeneidade de regras justamente pela ausência de uma definição clara sobre as diretrizes que devem nortear o sistema de carreiras. Portanto, o MGI considera que o momento atual é propício para promover a organização desse novo sistema, de modo a gerar maior coerência e robustez na Administração Pública, por meio de uma abordagem sistêmica da organização das carreiras.
Por fim, a definição, pelo MGI, de novas diretrizes para o sistema de carreiras representa o primeiro passo em direção a essa abordagem sistêmica. As novas diretrizes também contribuirão para melhorar a gestão de pessoas no Poder Executivo federal e assegurar maior aderência das estruturas dos cargos e carreiras às necessidades da Administração, o que concorrerá para a melhoria dos serviços prestados à sociedade.
*Sobre os autores:
Delciene Pereira é Coordenadora Geral na SGP/MGI
Douglas Andrade da Silva é Ex-Diretor de Carreiras e Desenvolvimento de Pessoas na SGP/MGI
José Celso Cardoso Jr. é Secretário de Gestão de Pessoas no MGI.
**Os artigos publicados não traduzem a opinião do Anffa Sindical. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos temas sindicais e de refletir as diversas tendências do pensamento.